Entre outubro e novembro passados, o Rio teve sua primeira Mostra internacional de filmes de arte urbana, o Caradura. Com foco nas produções feitas para e no universo da arte urbana, a mostra exibiu filmes de longa, média e curta metragem feitos a partir da década de 1980 até os dias atuais.
Na programação, que não pude deixar de conferir, estiveram “Muros e murmúrios” da icônica Agnès Varda, em que a cineasta tenta responder, através do documentário de 16 minutos, questões sobre os murais de Los Angeles; “Luz, câmera, pichação”, de Gustavo Coelho, Bruno Caetano e Marcelo Guerra, meu colega de mestrado, que trata da distinção entre o grafite e a pichação. Distinção feita apenas no Brasil, vale lembrar.
E, para não me alongar na extensa lista, “Ossário” do artista Alexandre Órion, que documenta seu grafite reverso (prometo escrever uma coluna só sobre esse tema) em um túnel da cidade de São Paulo. Ao longo de 17 madrugadas, Órion, munido de pano, máscara e coragem, limpou a camada de sujeira incrustada nos 300 metros de parede onde fez a intervenção.
Com esses e outros filmes tão interessantes quanto, as amigas Lara Frigotto, Clarissa Guarilha, Clarissa Pivetta e o curador Pablo Aravena deram ao Rio a oportunidade de ter sua 1ª Mostra cinematográfica de filmes sobre o tema. Nova York teve seu “Kings of the city” em 2009, Berlim, durante três anos consecutivos, o “Rythm of the Line”, festival de filmes de grafite e hip-hop e, Londres, em 2008, a mostra de filmes “Street Art”, realizada na Tate Modern. Sem dúvida o diálogo sobre arte urbana tem se ampliado e a exibição de filmes que tratem das relações desse universo proporciona ao grande público uma visão mais larga sobre a questão. O fato de o Rio entrar nesse circuito é indicador não apenas de orgulho, mas da participação do carioca no debate. Sobre esses assuntos, conversei com as meninas produtoras da Mostra.
Quais acham ser os motivos para um segmento de arte (alguns teóricos chamam de arte urbana, outros de arte pública) ter a duração de mais de trinta anos de existência e ainda despertar interesse e polêmica?
Como “segmento” de arte, acreditamos que a arte urbana seja justamente algo que vai além disso, quer dizer, é um movimento artístico que não foi pensado para ser enquadrado como tal, ainda que o seja. Acreditamos que a expressão desses artistas deriva de uma relação muito íntima com o espaço público urbano – seja como suporte, seja como inspiração para o desenvolvimento de uma linguagem artística – o que por si só já é algo efêmero, em constante transformação. Por isso, sua capacidade de renovação e seu alcance tão grandes.
No contato com algumas obras, quais as que despertaram mais emoção e apreço estético? E quais as que impactaram pelo conteúdo crítico?
É difícil apontar trabalhos específicos, dada a diversidade de linguagens e estéticas. E acreditamos que isto é o que torna a arte urbana rica atualmente, isto é, algo que vai além do apreço estético ou da arte de protesto. É claro que alguns trabalhos acabam se destacando e isso deve ser normal em qualquer segmento artístico. De qualquer maneira, acreditamos que o que importa mesmo é a liberdade com que essas manifestações artísticas são criadas, sejam elas um nome rabiscado na parede, um desenho abstrato, um personagem com traços detalhados, um adesivo colado, uma intervenção de limpeza da cidade… e por aí vai.
Contem um pouco dos objetivos da produtora em relação ao tema arte urbana. Como foi organizar uma Mostra internacional de filmes? Por que exatamente filmes e não outra mídia?
Nascemos como uma produtora audiovisual e este é o nosso foco. Trabalhamos com produção em cinema, vídeo e fotografia. Quando percebemos que a temática da arte urbana estava presente em muitos dos nossos projetos, nos pareceu natural unir as duas coisas e assim realizar a primeira mostra de filmes sobre arte urbana do Brasil, chamada “Caradura”. A “Caradura” tornou-se então um projeto inédito e pioneiro no continente latino-americano. Algumas mostras semelhantes já haviam acontecido em outras partes do mundo (Nova York, Berlim e Londres, mais precisamente), mas sem periodicidade. Nossa ideia então foi reunir filmes que lidassem com a temática da arte urbana, construindo um panorama histórico e global, com obras de mais de 10 países, dos anos 80 até hoje.O projeto foi aprovado pela Caixa Cultural e aconteceu aqui no Rio, em outubro. Ficamos bastante surpresas e empolgadas com a reação positiva do público e da mídia, que deram um destaque bem legal pro evento. Inclusive, já estamos em contato com outras cidades e países que querem sediar a “Caradura”, o que pra nós é muito gratificante.
Como avaliam a produção cinematográfica sobre esse tema? Como se deu a curadoria?
Em 2010 a gente estava participando de um evento de audiovisual aqui no Rio e conhecemos o Pablo Aravena, produtor e realizador chileno radicado no Canadá. O Pablo trabalha com esse universo há muito tempo, já foi curador de algumas mostras e dirigiu o filme “Next”, que retrata a arte urbana nas principais capitais do mundo [a foto que ilustra esta entrevista é do filme “Estilo Chileno”, de Pablo]. Quando montamos o projeto da “Caradura”, o convidamos para ser o curador. O processo de curadoria foi complicado num primeiro momento, pelo fato de ser uma mostra internacional com um orçamento bastante limitado. Infelizmente, alguns títulos que considerávamos importantes ficaram de fora, mas ainda assim, conseguimos fazer uma programação com mais de 30 filmes, entre longas e curtas metragens, documentários, ficções e filmes experimentais. De certa forma, privilegiamos filmes que retratassem a arte urbana em sua essência, isto é, aquela feita na rua e para a rua. Grande parte dos filmes exibidos foi realizado na década de 80 ou nos primeiros anos do século 21, revelando a ânsia por documentar os momentos mais expressivos do movimento de arte urbana mundial (seu nascimento, nos anos 80, e seu “boom”, nos anos 2000).
Uma boa surpresa foi constatar que este universo também atraiu cineastas de grande renome internacional, como os franceses Chris Marker e Agnès Varda, diversificando ainda mais a programação. E uma surpresa não tão boa foi constatar a escassez de longas brasileiros sobre o tema: somente dois títulos. Em uma avaliação preliminar, acreditamos que o sucesso de eventos como a “Caradura” podem realmente fomentar a produção audiovisual sobre o tema no Brasil. Indo além, acreditamos também que o conceito de arte urbana associado à produção audiovisual pode se expandir, algo que já estamos estudando para uma próxima edição da mostra.
Quais produções da Mostra destacariam como imprescindíveis?
Dos filmes brasileiros, sem dúvida o destaque é o “Pixo”, do João Wainer e do Roberto Oliveira. É um documentário que retrata a realidade da pichação em São Paulo, com imagens de arquivo dos próprios pichadores. No caso dos filmes internacionais, tem muita coisa diferente. O clássico super premiado “Style Wars”, de Tony Silver, é imprescindível para os amantes do tema, porque documenta o surgimento do graffiti nos trens de Nova York em 1983. Por outro lado, não precisa ser amante de arte urbana pra gostar de “Oscar”, de Sergio Morkin, documentário que conta a história de um taxista que, nas horas vagas, intervém em cartazes publicitários nas ruas de Buenos Aires. É um filme que dialoga com o contexto político e econômico da Argentina do início dos anos 2000. Ou ainda “Gatos Empoleirados”, de Chris Marker, que persegue o misterioso grafitti de um gato que se espalhou pelas ruas de Paris após os atentados de setembro de 2001. Dos curtas, destacamos o trabalho do David Ellis, artista norte americano que cria suas obras em videoarte, através de time lapses digitais, e, por fim, o webdoc interativo “Défense d’afficher”, do coletivo francês La Maison du Directeur, que exibimos aqui pela primeira vez em formato para salas de cinema. Trata-se de um documentário em episódios com perfis de artistas em 8 capitais do mundo.
https://www.rioetc.com.br/sem-categoria/arte-urbana-na-sala-escura/?fbclid=IwAR0UdeR0VuAlzhbxm6g4MZCNMpC-104a_qIV734Tkv2UV6wZTIqXnSky9eY